O Eterno Marido, de Fiódor Dostoiévski

Resumo e análise da obra O Eterno Marido, de Fiódor Dostoiévski

Introdução

Publicado originalmente em 1869, O Eterno Marido é uma das obras menos extensas, porém mais densas e psicologicamente complexas de Fiódor Dostoiévski. Neste romance curto, o autor russo constrói uma narrativa penetrante sobre ciúme, culpa, traição, identidade e os jogos de poder nas relações humanas. A trama gira em torno do reencontro entre dois homens unidos por um passado de infidelidade e segredos mal resolvidos: Velchanínov, um aristocrata decadente e narcisista, e Trusotski, o “eterno marido”, figura patética e ressentida que encarna um tipo masculino submisso, passivo e humilhado.

A obra é uma verdadeira dissecação da psique humana em suas camadas mais contraditórias e desconfortáveis. Com ironia trágica e um olhar clínico sobre os comportamentos sociais e emocionais, Dostoiévski aprofunda a angústia existencial de seus personagens, revelando os efeitos corrosivos da culpa e da dissimulação. Apesar de ser menos citado que os grandes romances do autor, como Crime e Castigo ou Os Irmãos Karamázov, O Eterno Marido concentra, em poucas páginas, muitos dos temas fundamentais de sua obra.

Enredo

A narrativa tem início com a reintrodução de Alexei Ivanovitch Velchanínov, um homem de trinta e poucos anos que vive um momento de crise pessoal, envolto em lembranças de sua juventude dissoluta e de suas relações passadas. É então que, inesperadamente, ele reencontra Pável Pávlovitch Trusotski, o marido traído de uma antiga amante sua, agora viúvo. Trusotski chega a São Petersburgo e procura Velchanínov com propósitos obscuros, oscilando entre atitudes de amizade, ressentimento e hostilidade velada.

Conforme a trama avança, torna-se evidente que Trusotski não apenas sabe do adultério ocorrido anos antes, mas também nutre sentimentos ambíguos em relação a Velchanínov, alternando entre a necessidade de sua companhia e o desejo de vingança. Ambos os personagens se envolvem em um jogo psicológico perturbador, marcado por humilhações sutis, desconfianças mútuas e tensões latentes. Trusotski está acompanhado de Liza, sua filha pequena, cuja presença adiciona um elemento de responsabilidade e inocência à complexa teia emocional que os cerca.

O ápice do romance ocorre quando Trusotski, em meio a um surto de instabilidade emocional, chega a tentar assassinar Velchanínov. No entanto, o crime não se consuma, e ambos os homens seguem seus caminhos. O desfecho é marcado por um distanciamento entre os dois e pela sugestão de que o ciclo de humilhação e submissão que define Trusotski continuará em outras relações, consolidando-o como o “eterno marido”.

Análise dos principais conceitos e temas

1. A figura do "eterno marido"

O conceito que dá nome ao livro — o “eterno marido” — é uma construção simbólica de Dostoiévski para representar um tipo específico de homem que vive sempre em função da esposa, da estrutura conjugal e, muitas vezes, da humilhação que esse papel acarreta. Trusotski é a personificação desse arquétipo: um homem que não apenas foi traído, mas que parece destinado a ocupar a posição do traído, do submisso, do que é sempre posto em segundo plano.

Trusotski não é um vilão nem uma vítima pura: ele é simultaneamente patético e ameaçador, passivo e manipulador, frágil e violento. A “eternidade” de seu papel não se refere apenas à sua condição conjugal, mas à sua estrutura psicológica — ele está preso a esse lugar simbólico no qual a masculinidade está corroída, fragmentada e dependente do olhar alheio. A escolha do termo “eterno” sugere a ideia de repetição, de destino trágico, de uma estrutura que se impõe ao sujeito sem possibilidade de redenção.

2. Culpabilidade e expiação

A culpa é um dos motores centrais da narrativa. Velchanínov, embora pareça em um primeiro momento o mais racional e controlado dos dois, revela-se ao longo da obra atormentado pela culpa do adultério que cometeu no passado. Essa culpa não é apenas moral ou social, mas existencial. Ele é assombrado por lembranças, por dúvidas sobre sua possível paternidade em relação a Liza, e por um sentimento difuso de vazio e autodestruição.

Dostoiévski não trabalha com uma moralidade simples. A culpa em seus personagens não leva necessariamente à redenção — muitas vezes, conduz ao colapso, à paralisia, ao ressentimento. Velchanínov é um homem dividido entre a arrogância de seu passado e a decadência do presente, incapaz de lidar com a responsabilidade de seus atos. O reencontro com Trusotski é uma espécie de julgamento moral silencioso, em que as falas e gestos substituem tribunais formais.

3. Relações de poder e humilhação

Outro eixo fundamental da obra é a dinâmica de poder entre os personagens. A relação entre Velchanínov e Trusotski é construída como uma espécie de duelo psicológico, em que os papéis de dominador e dominado se alternam de maneira sutil. Ora Velchanínov se mostra superior, ora Trusotski assume o controle com sua dissimulação, sua passividade estratégica e suas insinuações venenosas.

A humilhação — tema recorrente em Dostoiévski — aparece aqui como uma força ambígua: ela destrói, mas também dá poder. Trusotski é humilhado, mas usa essa condição para manipular, chantagear e tentar recuperar sua dignidade perdida. A obra sugere que, no universo humano, a linha entre vítima e algoz é tênue, e muitas vezes os dois papéis se entrelaçam em um ciclo sem fim.

4. A morte e o lugar da criança

A presença de Liza, a filha de Trusotski, introduz um novo nível de complexidade ao romance. A criança é tanto símbolo de inocência quanto de culpa. Sua saúde frágil e eventual morte evocam temas como a fragilidade da vida, a perda e o fracasso das figuras adultas em proteger o que há de mais puro. Liza funciona como um espelho moral: diante dela, os dois homens são confrontados com sua incapacidade de amar verdadeiramente, de cuidar, de construir vínculos duradouros.

Dostoiévski frequentemente insere crianças em suas obras como termômetros da decadência moral dos adultos. Em O Eterno Marido, Liza é o elemento que ainda vincula Trusotski ao passado e Velchanínov à possibilidade de responsabilidade, ainda que esta nunca se concretize. A morte da criança sela a falência ética dos protagonistas e marca o ponto final de suas ilusões.

5. Ironia e tragédia

Embora trate de temas trágicos, o romance é perpassado por uma ironia amarga. Trusotski, com sua aparência ridícula e seu comportamento dúbio, é uma figura tragicômica, que suscita tanto piedade quanto desprezo. Essa ambiguidade é típica de Dostoiévski, que não oferece figuras unidimensionais: todos os personagens são contraditórios, incoerentes, humanos em sua complexidade.

A ironia é uma ferramenta para desnudar a hipocrisia das relações sociais e a dissonância entre o que os personagens dizem e o que realmente sentem. Ela é o meio pelo qual Dostoiévski expõe a tragédia da existência moderna — não mais marcada por heróis e grandes feitos, mas por covardias sutis, ressentimentos silenciosos e derrotas íntimas.

Conclusão: atualidade da obra

O Eterno Marido permanece extremamente atual por sua capacidade de revelar os conflitos psicológicos que estruturam as relações humanas, especialmente nas esferas da conjugalidade, da identidade masculina e das tensões morais cotidianas. Em um mundo contemporâneo em que os modelos de masculinidade estão em profunda transformação, a figura do “eterno marido” ressurge como representação das inseguranças, dependências afetivas e fragilidades emocionais que desafiam os estereótipos tradicionais.

Além disso, o romance toca em questões que atravessam todas as épocas: a dificuldade de lidar com a culpa, os efeitos corrosivos do ressentimento, a complexidade dos vínculos humanos. A obra de Dostoiévski continua sendo um espelho incômodo da alma humana, capaz de iluminar os recantos mais sombrios e inconfessáveis de nossas experiências mais íntimas.

FAQ – Perguntas Frequentes sobre O Eterno Marido

1. Quem é o "eterno marido" no romance?
Trusotski é o personagem que encarna o arquétipo do “eterno marido”. Ele representa o homem que vive em função da esposa e da instituição do casamento, sendo constantemente traído, humilhado ou posto em posição de subordinação emocional. Esse papel não é apenas social, mas também psicológico, marcado por passividade, ressentimento e dependência afetiva.

2. Qual é o papel da culpa na narrativa?
A culpa atua como elemento motor da narrativa. Velchanínov é corroído pela culpa do adultério cometido no passado, enquanto Trusotski parece carregar a culpa de não ter sido um marido suficientemente “forte”. Essa culpa se manifesta em sonhos, lembranças, gestos ambíguos e no constante tensionamento entre os personagens.

3. Qual o significado simbólico da personagem Liza?
Liza, a filha de Trusotski, representa tanto a inocência quanto a responsabilidade negligenciada. Sua fragilidade e posterior morte revelam o fracasso moral dos adultos ao seu redor. Ela simboliza a possibilidade de redenção, que não se realiza, e serve como um espelho silencioso para os dois protagonistas.

4. O livro tem um vilão claro?
Não. Dostoiévski trabalha com personagens ambíguos. Velchanínov e Trusotski alternam entre vítima e algoz. Ambos são culpados e falhos, o que impede uma leitura simplista em termos de “bem” e “mal”. Essa complexidade é uma das marcas da obra do autor russo.

5. O que torna esta obra relevante para os dias atuais?
O Eterno Marido permanece relevante por sua abordagem profunda das relações interpessoais, dos sentimentos de culpa e ressentimento, da fragilidade da identidade masculina e dos jogos de poder emocionais. Em tempos de transformações nas estruturas familiares e de questionamentos sobre os papéis de gênero, o romance se mostra um retrato ainda atual dos dilemas existenciais humanos.

6. Como essa obra se relaciona com outras de Dostoiévski?
Apesar de sua brevidade, O Eterno Marido compartilha dos grandes temas da obra dostoiévskiana: culpa, livre-arbítrio, ambiguidade moral e a exploração do inconsciente humano. A diferença está na forma concentrada e mais íntima da narrativa, que foca em apenas dois personagens principais e suas tensões silenciosas, em contraste com os dramas épicos de obras como Os Irmãos Karamázov ou Crime e Castigo.


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